Lei da Liberdade Religiosa

Lei da Liberdade Religiosa (CC)

O que ficou por dizer, no programa hora H

Artigo publicado no Jornal da Marinha Grande em 98/06/12





Há dias, tive o privilégio da participar no programa Hora H, da RCM, de autoria da Dr.ª Cláudia Santos, sobre liberdade religiosa, e quero em primeiro lugar felicitá-la, bem como à nossa emissora da Marinha Grande, por esta iniciativa.

Para quem não ouviu o programa, devo dizer que esteve presente o Pastor Emídio, da Igreja Batista da Marinha Grande, o Padre Sérgio da Igreja Católica Romana, o escritor Hermínio Nunes como ateu e eu próprio, como cristão indenominacional, não filiado em nenhuma igreja, embora de formação presbiteriana e colaborador da Igreja Batista da Maceira. Penso que nenhum de nós estava em representação das suas igrejas, mas de qualquer maneira, foi uma feliz amostragem do pensamento da nossa população do Concelho da Marinha Grande em matéria de religião.

Como a moderadora do programa reconheceu, o tempo foi muito escasso para se abordar o assunto da Liberdade de Religião, pelo que decidi escrever estas linhas para acrescentar, o que da minha parte ficou por dizer, e se os outros companheiros decidirem fazer o mesmo, certamente que o Jornal da Marinha Grande não deixará de o publicar.

Logo na introdução, a moderadora do programa referiu-se ao “decair da Igreja Católica e ao aparecimento desenfreado de outras religiões, cada uma chamando a si a Verdade Santa”.

Na altura não comentei o assunto. Estando presente um sacerdote católico, esperava que ele o comentasse, mas o Padre Sérgio não se referiu ao assunto, e pensando bem, julgo que tomou a opção certa. No entanto, eu gostaria de comentar a afirmação do decair da Igreja Católica e faço-o consciente de que a opinião dum protestante sobre o assunto terá talvez mais significado do que os comentários de quem fala da sua própria igreja.

Não há dúvida de que a Igreja Católica se tem alterado nos últimos tempos. Mas será isso o decair da Igreja Católica?

Tudo depende dos nossos ideais. Para quem defende uma Igreja Católica tipo medieval, em que o Papa de certa maneira acaba por ocupar o lugar deixado vago pelos antigos imperadores romanos, numa Europa desorganizada e dividida em pequenos reinos em constantes lutas internas, acabando por ser uma autoridade para nomear e exonerar governantes, validar ou dissolver nações, numa época em que os povos eram “evangelizados” pela força das armas dos exércitos papais, certamente que a afirmação será verdadeira.

Mas será isso que os católicos mais esclarecidos pretendem? Julgo que não, pelo que me parece mais correcto falar em “evolução” do que no decair da Igreja Católica.

Não sou católico como sabem os que me conhecem. Há pormenores que me separam do catolicismo, mas penso que a evolução da Igreja Católica tem sido no bom sentido, embora tenha ainda um caminho a percorrer, assim como todos nós.

Outra afirmação do programa Hora H, que não houve tempo para comentar, é a afirmação de que cada igreja chama a si a Verdade Santa.

Penso que, onde houver dois cristãos que não sejam indiferentes à mensagem de Jesus, que meditem nos seus ensinos e que procurem servir ao Senhor de acordo com as suas palavras em Mateus 22:37 “Amarás ao Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento”, certamente que surgirão pequenas diferenças na interpretação da mensagem de Jesus. Isso é natural e até considero salutar que assim seja.

Outra coisa bem diferente é que cada um se sinta como único e exclusivo detentor da Verdade. Já houve tempos em que a Igreja Católica se apresentava como a única verdadeira e em que afirmava que “Fora da Igreja não há salvação”, mas penso que essa posição já há muito está ultrapassada. Nenhuma igreja pode conceder a salvação, mas pode fazer o que fizeram os apóstolos, pode indicar o que Jesus disse em João 14:6 “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim”.

É possível que essa atitude exclusivista ainda prevaleça em alguma das novas igrejas, assim como continua em muitos católicos, em especial nos mais idosos, mas não é a posição actual do catolicismo nem das igrejas protestantes.

Eu tenho de certa maneira uma formação presbiteriana, mas não considero a Igreja Presbiteriana mais santa nem mais verdadeira do que as outras, pois esses ideais só em Cristo os podemos encontrar.

Mas voltando ao principal assunto do programa Hora H, em que mal chegámos a entrar por falta de tempo, gostaria de dar a minha opinião sobre o projecto de Lei de Liberdade Religiosa, fruto do trabalho duma equipa liderada pelo Conselheiro José de Sousa Brito.

Embora a nossa Constituição afirme no seu artigo 41º-3. “As igrejas e comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto”, parece que o 25 de Abril se limitou até aqui, a trazer uma certa “tolerância” para com as outras religiões, que não a católica romana. Segundo concluiu a referida Comissão, a Lei 4/91 não funcionou eficientemente, pelo que foi proposta a sua revogação.

Penso que esta Comissão, salvo alguns casos pontuais que me suscitam algumas dúvidas, duma maneira geral, fez um bom trabalho, dentro das competências que lhes foram atribuídas, pois o despacho que criou essa Comissão de Reforma da Lei de Liberdade Religiosa, pôs como condição a inalterabilidade da Concordata com a Santa Sé.

Enquanto não for revogada uma Concordata que atribui privilégios a uma igreja, certamente que estamos em face de liberdade religiosa diferente para os vários portugueses, ou por outras palavras, temos ainda discriminação religiosa em Portugal, facto que neste aspecto nos coloca na cauda da Europa. Mas a verdade é que não estamos sós. Há velhos amigos que nos fazem companhia. Temos o caso da Inglaterra, em que o seu rei ainda é considerado como o chefe e protector da Igreja Anglicana, embora sejam cada vez mais os ingleses que defendem que o seu rei deveria proteger a liberdade de religião de todos os seus súbditos e não uma determinada igreja, e temos também a Grécia que há anos teve de responder no Tribunal Europeu por falta de liberdade religiosa para benefício da Igreja Ortodoxa Grega e por influência desta igreja.

Os outros dois países que nos faziam companhia na discriminação religiosa em favor da Igreja Católica Romana, a Espanha e a Itália, já revogaram as concordatas que tinham com o Vaticano, substituindo-as por acordos, não só com a Igreja Católica Romana, mas também com outras igrejas. A diferença é grande, como podemos compreender. A liberdade dos católicos espanhóis e italianos já não se baseia no direito internacional, não é garantida por acordos entre estados, não se trata da ingerência dum estado estrangeiro em Espanha ou na Itália estabelecendo a desigualdade dos seus cidadãos, mas baseia-se na liberdade de todos os espanhóis e italianos. Noto aliás, uma grande semelhança entre a nossa Proposta de Lei e a Lei Orgânica espanhola de 5 de Julho de 1980, o que me leva a pensar que estamos 20 anos atrasados em relação a Espanha.

Se as informações que tenho ainda estão actualizadas, a Espanha estabeleceu acordos com a Federação de Entidades Evangélicas (corresponde à nossa Aliança Evangélica Portuguesa), com a Comunidade Israelita e a Islâmica, além do acordo com a Igreja Católica Espanhola. A Itália, além do acordo com a Igreja Católica Italiana, tem acordos com a Igreja Luterana, Igreja Valdense, Igreja Adventista, Assembleia de Deus, Igreja Batista e Comunidade Israelita.

Penso no entanto, que se esta proposta de Lei for aprovada, apesar de continuarmos, em matéria de religião, dos mais atrasados na Comunidade Europeia, não deixa de ter aspectos positivos, embora insuficientes, pois tiveram de trabalhar dentro do campo delimitado para a sua acção. Como aliás a própria Comissão afirma na introdução do documento, terá de haver contactos com o Vaticano para a revogação da Concordata, que está em contradição com a nossa Constituição.

Poderia também levantar-se a questão: Se a Concordata, que era a base do entendimento entre a ditadura e o seu principal suporte, a Igreja Católica, com cedências de parte a parte, tem de ser revogada, não deveria ser esse o primeiro passo para se acabar com a discriminação religiosa em Portugal?

Eu penso que sim. Já não faz sentido falar, por exemplo em divisão eclesiástica do Ultramar Português, como vem no artigo 26, ou em acordo missionário que no seu artigo 6º estabelece as dioceses de Angola, Moçambique e Timor.

Penso que a primeira coisa a tratar seria a revogação da Concordata, por três motivos:

1) Para que os não católicos possam ter os mesmos direitos que todos os portugueses, ou seja igual liberdade para todos.

2) Devido ao prestígio de Portugal, para que possamos entrar no terceiro milénio como um país em que não haja discriminação religiosa.

3) Para mudar a imagem da própria Igreja Católica Portuguesa, pois a Concordata nasceu num contexto histórico de ditadura e de perseguição religiosa, que não corresponde à nossa realidade actual. Principalmente agora, que a Igreja Católica também se aproxima do movimento ecuménico, não faz sentido falar em ecumenismo e ao mesmo tempo manter privilégios que representam a discriminação para as outras igrejas.

Outro assunto que foi abordado ao de leve no programa da RCM e a que gostaria de me referir novamente é o que serve de base ao nosso pensamento sobre liberdade religiosa.

Falou-se de liberdade das igrejas e organizações religiosas, o que é importante, mas é bom lembrar que a liberdade das igrejas deve ser assegurada num contexto jurídico e não teológico, e deve ter como fundamento a liberdade do cidadão.

Possivelmente por ser um cristão não filiado em nenhuma igreja, embora não seja o que se costuma designar por “cristão não praticante” pois colaboro onde “tiverem a paciência de me aceitar”, onde possa ser útil e onde haja liberdade de expressão, mas não estando ligado a nenhuma igreja, sou talvez mais sensível ao problema da liberdade religiosa do cidadão.

Nem sempre a liberdade das igrejas corresponde à liberdade religiosa do cidadão.

Por vezes, pode até estar em oposição à liberdade dos próprios membros dessas igrejas. Por exemplo, nunca a Igreja Católica foi tão forte e com tantos direitos e liberdades, como na idade média, mas será que isso se traduziu na liberdade religiosa dos católicos medievais?

A liberdade das igrejas é importante, mas pessoalmente preocupo-me mais com as liberdades do cidadão em matéria religiosa, e ao fazer esta afirmação, estou a pensar na liberdade de protestantes, liberdade de ortodoxos, liberdade de católicos, de islâmicos ou de hindus, bem como as liberdades da maioria da nossa população, que é constituída por agnósticos ou ateus de tradição católica.

Defendo a liberdade duma Igreja Católica Portuguesa, ou qualquer outra igreja, alicerçada na liberdade dos seus membros e não na Concordata ou outros acordos internacionais.

Nesta proposta de Lei fala-se em igrejas e em comunidades religiosas, e fico em dúvida se uma eventual Associação de Ateus ou de Agnósticos não poderia ter os mesmos direitos em face desta Lei.

Penso que devemos lutar pelos nossos direitos, mas só os merecemos quando tivermos a coragem de os rejeitar, caso não sejam válidos para todos os portugueses. Ou por outras palavras: Direitos sim... Privilégios não.