Apostilas do Seminário de Filosofia - 19

Apostilas do Seminário de Filosofia - 19




O Anti-Gramsci ~ 2

Introdução à Filosofia pelo Método Crítico-Dialético








§ 4. A resposta infalível a uma pergunta postiça





Logo a seguir, Gramsci afirma:

Nota IV. Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas "originais"; significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, "socializá-las" por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato "filosófico" bem mais importante e "original" do que a descoberta, por parte de um "gênio filosófico", de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais1.


"Ideologia" é um tipo de discurso que, em defesa de valores arbitrários e no mais das vezes implícitos e não declarados, enfatiza determinados aspectos da realidade que sirvam de suporte retórico para esses valores, ocultando ou minimizando os aspectos contrários, por mais evidentes ou importantes que sejam e por mais improvável que seja escaparem à atenção de qualquer observador isento. Ideologia é seletividade deformante da realidade conhecida, em vista de um interesse político.

Nesse sentido, o discurso ideológico não é nunca "dialético", por mais que se pavoneie de sê-lo, pois foge ao confronto dos contrários. O confronto faria automaticamente vir à luz os pressupostos implícitos no discurso, atenuando, relativizando ou eventualmente impugnando aquilo que ele deseja afirmar. Por isto mesmo é evitado. Para evitá-lo, recorre-se à argumentação por topoi ou lugares-comuns, que, dando uma aparência de obviedade imediata a um determinado juízo de valor, subtrai à atenção do ouvinte as bases da pergunta a que essa afirmação responde e portanto sonega-lhe a possibilidade de questionar a formulação mesma dessa pergunta, sua adequação ao problema de que se trata, sua relevância maior ou menor em comparação com outras abordagens possíveis do mesmo tema, etc. Tudo isto, como que por milagre, desaparece do horizonte de consciência do ouvinte ou leitor, sobrando somente a imagem hipnótica da pergunta isolada e da resposta infalível.2

O parágrafo que acabo de citar é um exemplo perfeito de discurso ideológico, marcado pela ênfase unilateral que escamoteia à atenção do leitor as mais óbvias comparações sugeridas pela apresentação mesma do assunto.

Esse parágrafo coloca-nos diante de uma oposição entre a verdade conhecida solitariamente por um pensador isolado e a verdade colocada a serviço da ação coletiva, e afirma, resolutamente, que esta é melhor e mais importante. À primeira vista, é uma afirmação óbvia de simples senso comum. O remédio para uma doença grave, por exemplo, vale menos quando só um homem o conhece do que quando posto a serviço de muitos. É um topos ou lugar-comum: o bem de muitos é melhor que o bem de poucos ou de um só.

Assim, colocada a pergunta: "Que é que vale mais - a descoberta individual ou sua difusão entre muitos?", a mente entorpecida opta automaticamente por esta última, sem questionar se a pergunta mesma faz sentido.3 No caso, o questionamento, que na mente filosoficamente treinada emergiria de maneira quase espontânea à simples leitura desse parágrafo, poderia assumir a seguinte forma: Que sentido faz equacionar o problema sob a forma dessa oposição, se nunca ou quase nunca um descobridor tende a guardar sua descoberta para si, mas quase que necessariamente o impulso da descoberta vem junto com o impulso da difusão? A oposição colocada é natural, necessária, sugerida pela natureza mesma dos fatos ou, ao contrário, é uma abordagem postiça, arbitrária e puramente inventada com o propósito de impingir um certo juízo de valor mediante o truque de apresentá-lo como resposta a uma pergunta postiça especialmente planejada para esse fim?

A resposta a este questionamento indicará se estamos diante de um exame filosófico sério ou de um joguinho retórico.

Mas o questionamento pode ir um pouco mais fundo e perguntar: Que razões filosoficamente válidas haveria para montar uma oposição entre a verdade solitariamente conhecida e a ação coletiva, se esta última não tem conexão lógica com a veracidade ou falsidade das idéias que a inspiram, e se em suma, como o demonstra abundantemente a História, considerados enquanto meios de "conduzir uma multidão de homens a pensar coerentemente e de maneira unitária", a mentira ou o erro funcionam tão bem quanto a verdade?

Basta fazer esse breve questionamento para perceber que a oposição entre a verdade solitária e a verdade que beneficia as massas não é de maneira alguma um problema sério sugerido pela experiência histórica, mas, bem ao contrário, é apenas uma hipótese abstrata e arbitrária cuja discussão, se pode servir para exercícios de retórica escolar, em nada nos fará avançar no conhecimento da realidade.

Em terceiro lugar, para qualquer cérebro treinado em lógica, não há nenhum sentido em fazer uma comparação de valor entre uma coisa e aquilo que é condição de possibilidade dessa coisa. A descoberta individual - de uma verdade, de um remédio, de um equipamento - é condição de possibilidade prévia à difusão dessa descoberta, assim como ter nascido é condição de possibilidade para que um sujeito continue vivo aos trinta anos. A pergunta subentendida na abordagem de Gramsci é pueril, artificial e fingida como o seria uma redação escolar com o tema: "O que é melhor: ter nascido ou chegar vivo aos trinta anos de idade?"

Em nenhum momento de sua extensa obra4 Antonio Gramsci sobe acima desse nível ginasiano de abordagem dos problemas.






§ 5. Ordem intelectual e religião



"A filosofia é uma ordem intelectual,
coisa que nem a religião
nem o senso comum podem ser."5


Esta sentença já mostra o quanto Gramsci está disposto a falar da religião sem ter dela o menor conhecimento. Toda religião é necessariamente uma ordem intelectual - embora não seja somente isso -, e é a capacidade de ser elaborada progressivamente nos amplos sistemas racionais da teologia dedutiva que diferencia, precisamente, uma religião de uma pseudo-religião6.

Mais ainda: somente dentro do corpo das religiões pode surgir e desenvolver-se a vida intelectual em sentido eminente, que supõe o predomínio do pneuma sobre a psyche e a bios, inalcançável - exceto por milagre -- sem o suporte ritual e simbólico das práticas religiosas.

Pela própria incapacidade de perceber a independência eidética do plano espiritual em relação ao psíquico e mesmo ao biológico - pois só a um psychicos bem prisioneiro de seus estados subjetivos ocorreria a idéia de fazer uma comparação de valor, no mesmo plano, entre uma verdade teorética e sua aplicação prática --, Gramsci não poderia jamais conceber o que é uma religião. Por isto mesmo, limita-se a considerá-la somente enquanto "elemento do senso comum desagregado"7, sem notar que não está falando de uma religião e sim do resíduo sociológico de uma religião extinta que se tornou metafórica.

Não que ele ignore, por completo, que há alguma diferença entre a religião e sua expressão sociológica ou, como ele diz, política. Mais adiante ele nos dará um sinal de que sabe que essa diferença existe - e a prova inequívoca de que radicalmente não sabe em que ela consiste.

Por enquanto, limitemo-nos a observar o seguinte. Ele diz que a filosofia é uma ordem intelectual precisamente em contradistinção à religião, que não o é. Mas a verdade é precisamente o contrário. A religião, para existir, tem de ser não apenas uma ordem intelectual completa e racionalmente coerente em todos os seus pontos - e a simples existência de um direito canônico já o demonstra desde logo --, mas também essa ordem tem de ser indefinidamente abrangente, isto é, capaz de ampliar-se num número ilimitado de desenvolvimentos lógicos que em nada desmintam os seus princípios ou dogmas fundamentais. A religião é não apenas uma ordem intelectual, mas uma ordem sistêmica, e esta ordem sistêmica deve abranger - ou pelo menos não contradizer - todas as experiências e conhecimentos possíveis em todas as direções, motivo pelo qual o trabalho de tirar conseqüências lógicas do dogma e de coerenciar com ele as novas descobertas e experiências humanas é, em todas as religiões, um trabalho contínuo e sem fim. Mais ainda, essa ordem, na medida em que se expande logicamente em todas as direções sem contradição com os dogmas centrais, pode-se dizer que já está dada sinteticamente nesses dogmas, os quais contêm a semente de todos os seus desenvolvimentos possíveis. A menor ruptura ou incoerência nesse sistema constituirá, precisamente, o que se chama um cisma.

Em contraposição com isso, nenhuma filosofia pode se gabar de possuir a priori, como a religião, um conjunto de princípios tão abrangentes e tão universalmente válidos que deles tudo se possa deduzir ou tudo se possa harmonizar logicamente com eles indefinidamente até o fim dos tempos. Na medida mesma em que o conhecimento filosófico é de natureza crítica, ele não pode ter a pretensão de constituir um sistema ao mesmo tempo fechado e passível de desenvolvimentos infinitos. Por isto mesmo, os filósofos têm dedicado os seus esforços mais a descobrir e equacionar problemas do que a encontrar soluções definitivas. E, com mais forte razão ainda, aí se impõe a conclusão de que, se a religião é necessariamente uma ordem intelectual e uma ordem completa ou ao menos idealmente completa, toda filosofia é apenas um esforço crítico em direção a uma ordem possível que não se atinge e não se completa nunca.

A insistência obsessiva de Gramsci no caráter organizado, sistêmico e unitário das filosofias não prova outra coisa senão a sua pouca prática nos estudos filosóficos, pois, na maior parte das filosofias a unidade sistêmica não passa de um vago ideal orientador jamais realizado (e às vezes abandonado por completo, como no caso das filosofias ditas, como a de Nietzsche, "problemáticas" por oposição a "sistêmicas"), sem que elas deixem de ser filosofias por isto. Mais ainda, como o demonstrou Vladimir Soloviev, todas as filosofias contêm necessariamente em si alguns pontos de incoerência, dos quais nasce precisamente a possibilidade de que sejam contestadas, corrigidas ou modificadas pelas filosofias subseqüentes. Uma filosofia não se torna menos valiosa por conter incoerências internas, e é mesmo um dever do próprio filósofo, quando as percebe, assinalar sua presença, como o fez por exemplo Aristóteles, ao dar sinal de que notava, sem poder resolvê-la, uma incoerência básica do seu próprio sistema (no entanto um dos mais coerentes já surgidos) ao proclamar que só existe conhecimento científico do geral e que só o singular é real, sem consentir em tirar disto a conclusão de que o conhecimento é falso ou inadequado.

Já uma religião, se lhe aparecesse no corpo, à vista de todos, um rombo desse tamanho, já não seria uma religião e sim duas religiões, ou, melhor ainda, uma guerra de religiões.

A idéia de que a coerência unitária é uma característica essencial da filosofia, bem como a de que uma religião não é e não pode ser uma ordem intelectual reflete apenas a imaginação pueril de um palpiteiro inculto que, por falta de informação histórica válida, toma como certezas científicas os lugares-comuns do meio em que vive.




13/12/99



NOTAS

A Concepção Dialética da História, pp. 13-14. Voltar
Em comparação com isto, o exame filosófico caracteriza-se precisamente por explicitar ou por deixar subentendidas ao alcance do bom entendedor outras abordagens possíveis, respondendo a todas elas ao mesmo tempo, seja de maneira explícita e analítica, seja implícita e sintética. Voltar
Em contraposição a isto, a primeira preocupação do autêntico filósofo na exposição de suas idéias é a de provar que as perguntas que formula são fundamentais, que seu modo de abordar o assunto é melhor do que outros modos já tentados, etc. Ele pode fazer isto de maneira explícita ou implícita, mas, qualquer que seja o caso, a parte mais significativa do esforço filosófico é sempre a de equacionar corretamente as perguntas, nunca a de sair respondendo, de cara, a perguntas que não foram, elas mesmas, objeto de qualquer exame crítico. Voltar
Refiro-me somente aos livros que li: a Concepção Dialética da História; Maquiavel, a Política e o Estado Moderno; Literatura e Vida Nacional; Os Intelectuais e a Organização da Cultura; e Cartas do Cárcere - todos publicados pela Civilização Brasileira sob a orientação de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Na época em que li essas porcarias, as edições originais italianas eram muito caras e privei-me da sua leitura confiado na afirmação dos próprios editores de que esses cinco eram os livros principais - não sendo portanto de prever que pudesse encontrar nos outros alguma revelação assombrosa capaz de mudar de alto a baixo a compreensão do pensamento de Gramsci que por eles se podia obter. Se a edição completa trouxer surpresa nesse sentido, seus editores, sendo os mesmos da velha, terão a obrigação de declarar que, ao posar pela primeira vez perante os leitores como especialistas em Gramsci, não tinham sequer aprendido a discernir, na massa dos seus textos, o importante e o desimportante. Para a felicidade deles, não creio que isso possa acontecer, pois tão extensos são os livros mencionados, que dificilmente, no que sobra por editar em português, seu conteúdo essencial poderá vir a ser desmentido. Voltar
P. 14. Voltar
Não será demais observar que praticamente todos os instrumentos de análise lógica existentes, fora os inventados por Aristóteles e os acrescentados 2.400 anos depois dele pela moderna lógica matemática, foram desenvolvidos por religiosos para fins de exposição e discussão doutrinal. As contribuições infinitamente ricas das lógicas hindu, taoista, budista, islâmica, judaica e escolástica ao desenvolvimento da teoria da prova e da argumentação seriam uma imensa gratuidade histórica absolutamente inexplicável se a religião não fosse uma "ordem intelectual". Voltar
Id. Voltar





Apostilas do Seminário de Filosofia - 19




O Anti-Gramsci ~ 2

Introdução à Filosofia pelo Método Crítico-Dialético








§ 4. A resposta infalível a uma pergunta postiça





Logo a seguir, Gramsci afirma:

Nota IV. Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas "originais"; significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, "socializá-las" por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato "filosófico" bem mais importante e "original" do que a descoberta, por parte de um "gênio filosófico", de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais1.


"Ideologia" é um tipo de discurso que, em defesa de valores arbitrários e no mais das vezes implícitos e não declarados, enfatiza determinados aspectos da realidade que sirvam de suporte retórico para esses valores, ocultando ou minimizando os aspectos contrários, por mais evidentes ou importantes que sejam e por mais improvável que seja escaparem à atenção de qualquer observador isento. Ideologia é seletividade deformante da realidade conhecida, em vista de um interesse político.

Nesse sentido, o discurso ideológico não é nunca "dialético", por mais que se pavoneie de sê-lo, pois foge ao confronto dos contrários. O confronto faria automaticamente vir à luz os pressupostos implícitos no discurso, atenuando, relativizando ou eventualmente impugnando aquilo que ele deseja afirmar. Por isto mesmo é evitado. Para evitá-lo, recorre-se à argumentação por topoi ou lugares-comuns, que, dando uma aparência de obviedade imediata a um determinado juízo de valor, subtrai à atenção do ouvinte as bases da pergunta a que essa afirmação responde e portanto sonega-lhe a possibilidade de questionar a formulação mesma dessa pergunta, sua adequação ao problema de que se trata, sua relevância maior ou menor em comparação com outras abordagens possíveis do mesmo tema, etc. Tudo isto, como que por milagre, desaparece do horizonte de consciência do ouvinte ou leitor, sobrando somente a imagem hipnótica da pergunta isolada e da resposta infalível.2

O parágrafo que acabo de citar é um exemplo perfeito de discurso ideológico, marcado pela ênfase unilateral que escamoteia à atenção do leitor as mais óbvias comparações sugeridas pela apresentação mesma do assunto.

Esse parágrafo coloca-nos diante de uma oposição entre a verdade conhecida solitariamente por um pensador isolado e a verdade colocada a serviço da ação coletiva, e afirma, resolutamente, que esta é melhor e mais importante. À primeira vista, é uma afirmação óbvia de simples senso comum. O remédio para uma doença grave, por exemplo, vale menos quando só um homem o conhece do que quando posto a serviço de muitos. É um topos ou lugar-comum: o bem de muitos é melhor que o bem de poucos ou de um só.

Assim, colocada a pergunta: "Que é que vale mais - a descoberta individual ou sua difusão entre muitos?", a mente entorpecida opta automaticamente por esta última, sem questionar se a pergunta mesma faz sentido.3 No caso, o questionamento, que na mente filosoficamente treinada emergiria de maneira quase espontânea à simples leitura desse parágrafo, poderia assumir a seguinte forma: Que sentido faz equacionar o problema sob a forma dessa oposição, se nunca ou quase nunca um descobridor tende a guardar sua descoberta para si, mas quase que necessariamente o impulso da descoberta vem junto com o impulso da difusão? A oposição colocada é natural, necessária, sugerida pela natureza mesma dos fatos ou, ao contrário, é uma abordagem postiça, arbitrária e puramente inventada com o propósito de impingir um certo juízo de valor mediante o truque de apresentá-lo como resposta a uma pergunta postiça especialmente planejada para esse fim?

A resposta a este questionamento indicará se estamos diante de um exame filosófico sério ou de um joguinho retórico.

Mas o questionamento pode ir um pouco mais fundo e perguntar: Que razões filosoficamente válidas haveria para montar uma oposição entre a verdade solitariamente conhecida e a ação coletiva, se esta última não tem conexão lógica com a veracidade ou falsidade das idéias que a inspiram, e se em suma, como o demonstra abundantemente a História, considerados enquanto meios de "conduzir uma multidão de homens a pensar coerentemente e de maneira unitária", a mentira ou o erro funcionam tão bem quanto a verdade?

Basta fazer esse breve questionamento para perceber que a oposição entre a verdade solitária e a verdade que beneficia as massas não é de maneira alguma um problema sério sugerido pela experiência histórica, mas, bem ao contrário, é apenas uma hipótese abstrata e arbitrária cuja discussão, se pode servir para exercícios de retórica escolar, em nada nos fará avançar no conhecimento da realidade.

Em terceiro lugar, para qualquer cérebro treinado em lógica, não há nenhum sentido em fazer uma comparação de valor entre uma coisa e aquilo que é condição de possibilidade dessa coisa. A descoberta individual - de uma verdade, de um remédio, de um equipamento - é condição de possibilidade prévia à difusão dessa descoberta, assim como ter nascido é condição de possibilidade para que um sujeito continue vivo aos trinta anos. A pergunta subentendida na abordagem de Gramsci é pueril, artificial e fingida como o seria uma redação escolar com o tema: "O que é melhor: ter nascido ou chegar vivo aos trinta anos de idade?"

Em nenhum momento de sua extensa obra4 Antonio Gramsci sobe acima desse nível ginasiano de abordagem dos problemas.






§ 5. Ordem intelectual e religião



"A filosofia é uma ordem intelectual,
coisa que nem a religião
nem o senso comum podem ser."5


Esta sentença já mostra o quanto Gramsci está disposto a falar da religião sem ter dela o menor conhecimento. Toda religião é necessariamente uma ordem intelectual - embora não seja somente isso -, e é a capacidade de ser elaborada progressivamente nos amplos sistemas racionais da teologia dedutiva que diferencia, precisamente, uma religião de uma pseudo-religião6.

Mais ainda: somente dentro do corpo das religiões pode surgir e desenvolver-se a vida intelectual em sentido eminente, que supõe o predomínio do pneuma sobre a psyche e a bios, inalcançável - exceto por milagre -- sem o suporte ritual e simbólico das práticas religiosas.

Pela própria incapacidade de perceber a independência eidética do plano espiritual em relação ao psíquico e mesmo ao biológico - pois só a um psychicos bem prisioneiro de seus estados subjetivos ocorreria a idéia de fazer uma comparação de valor, no mesmo plano, entre uma verdade teorética e sua aplicação prática --, Gramsci não poderia jamais conceber o que é uma religião. Por isto mesmo, limita-se a considerá-la somente enquanto "elemento do senso comum desagregado"7, sem notar que não está falando de uma religião e sim do resíduo sociológico de uma religião extinta que se tornou metafórica.

Não que ele ignore, por completo, que há alguma diferença entre a religião e sua expressão sociológica ou, como ele diz, política. Mais adiante ele nos dará um sinal de que sabe que essa diferença existe - e a prova inequívoca de que radicalmente não sabe em que ela consiste.

Por enquanto, limitemo-nos a observar o seguinte. Ele diz que a filosofia é uma ordem intelectual precisamente em contradistinção à religião, que não o é. Mas a verdade é precisamente o contrário. A religião, para existir, tem de ser não apenas uma ordem intelectual completa e racionalmente coerente em todos os seus pontos - e a simples existência de um direito canônico já o demonstra desde logo --, mas também essa ordem tem de ser indefinidamente abrangente, isto é, capaz de ampliar-se num número ilimitado de desenvolvimentos lógicos que em nada desmintam os seus princípios ou dogmas fundamentais. A religião é não apenas uma ordem intelectual, mas uma ordem sistêmica, e esta ordem sistêmica deve abranger - ou pelo menos não contradizer - todas as experiências e conhecimentos possíveis em todas as direções, motivo pelo qual o trabalho de tirar conseqüências lógicas do dogma e de coerenciar com ele as novas descobertas e experiências humanas é, em todas as religiões, um trabalho contínuo e sem fim. Mais ainda, essa ordem, na medida em que se expande logicamente em todas as direções sem contradição com os dogmas centrais, pode-se dizer que já está dada sinteticamente nesses dogmas, os quais contêm a semente de todos os seus desenvolvimentos possíveis. A menor ruptura ou incoerência nesse sistema constituirá, precisamente, o que se chama um cisma.

Em contraposição com isso, nenhuma filosofia pode se gabar de possuir a priori, como a religião, um conjunto de princípios tão abrangentes e tão universalmente válidos que deles tudo se possa deduzir ou tudo se possa harmonizar logicamente com eles indefinidamente até o fim dos tempos. Na medida mesma em que o conhecimento filosófico é de natureza crítica, ele não pode ter a pretensão de constituir um sistema ao mesmo tempo fechado e passível de desenvolvimentos infinitos. Por isto mesmo, os filósofos têm dedicado os seus esforços mais a descobrir e equacionar problemas do que a encontrar soluções definitivas. E, com mais forte razão ainda, aí se impõe a conclusão de que, se a religião é necessariamente uma ordem intelectual e uma ordem completa ou ao menos idealmente completa, toda filosofia é apenas um esforço crítico em direção a uma ordem possível que não se atinge e não se completa nunca.

A insistência obsessiva de Gramsci no caráter organizado, sistêmico e unitário das filosofias não prova outra coisa senão a sua pouca prática nos estudos filosóficos, pois, na maior parte das filosofias a unidade sistêmica não passa de um vago ideal orientador jamais realizado (e às vezes abandonado por completo, como no caso das filosofias ditas, como a de Nietzsche, "problemáticas" por oposição a "sistêmicas"), sem que elas deixem de ser filosofias por isto. Mais ainda, como o demonstrou Vladimir Soloviev, todas as filosofias contêm necessariamente em si alguns pontos de incoerência, dos quais nasce precisamente a possibilidade de que sejam contestadas, corrigidas ou modificadas pelas filosofias subseqüentes. Uma filosofia não se torna menos valiosa por conter incoerências internas, e é mesmo um dever do próprio filósofo, quando as percebe, assinalar sua presença, como o fez por exemplo Aristóteles, ao dar sinal de que notava, sem poder resolvê-la, uma incoerência básica do seu próprio sistema (no entanto um dos mais coerentes já surgidos) ao proclamar que só existe conhecimento científico do geral e que só o singular é real, sem consentir em tirar disto a conclusão de que o conhecimento é falso ou inadequado.

Já uma religião, se lhe aparecesse no corpo, à vista de todos, um rombo desse tamanho, já não seria uma religião e sim duas religiões, ou, melhor ainda, uma guerra de religiões.

A idéia de que a coerência unitária é uma característica essencial da filosofia, bem como a de que uma religião não é e não pode ser uma ordem intelectual reflete apenas a imaginação pueril de um palpiteiro inculto que, por falta de informação histórica válida, toma como certezas científicas os lugares-comuns do meio em que vive.




13/12/99



NOTAS

A Concepção Dialética da História, pp. 13-14. Voltar
Em comparação com isto, o exame filosófico caracteriza-se precisamente por explicitar ou por deixar subentendidas ao alcance do bom entendedor outras abordagens possíveis, respondendo a todas elas ao mesmo tempo, seja de maneira explícita e analítica, seja implícita e sintética. Voltar
Em contraposição a isto, a primeira preocupação do autêntico filósofo na exposição de suas idéias é a de provar que as perguntas que formula são fundamentais, que seu modo de abordar o assunto é melhor do que outros modos já tentados, etc. Ele pode fazer isto de maneira explícita ou implícita, mas, qualquer que seja o caso, a parte mais significativa do esforço filosófico é sempre a de equacionar corretamente as perguntas, nunca a de sair respondendo, de cara, a perguntas que não foram, elas mesmas, objeto de qualquer exame crítico. Voltar
Refiro-me somente aos livros que li: a Concepção Dialética da História; Maquiavel, a Política e o Estado Moderno; Literatura e Vida Nacional; Os Intelectuais e a Organização da Cultura; e Cartas do Cárcere - todos publicados pela Civilização Brasileira sob a orientação de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Na época em que li essas porcarias, as edições originais italianas eram muito caras e privei-me da sua leitura confiado na afirmação dos próprios editores de que esses cinco eram os livros principais - não sendo portanto de prever que pudesse encontrar nos outros alguma revelação assombrosa capaz de mudar de alto a baixo a compreensão do pensamento de Gramsci que por eles se podia obter. Se a edição completa trouxer surpresa nesse sentido, seus editores, sendo os mesmos da velha, terão a obrigação de declarar que, ao posar pela primeira vez perante os leitores como especialistas em Gramsci, não tinham sequer aprendido a discernir, na massa dos seus textos, o importante e o desimportante. Para a felicidade deles, não creio que isso possa acontecer, pois tão extensos são os livros mencionados, que dificilmente, no que sobra por editar em português, seu conteúdo essencial poderá vir a ser desmentido. Voltar
P. 14. Voltar
Não será demais observar que praticamente todos os instrumentos de análise lógica existentes, fora os inventados por Aristóteles e os acrescentados 2.400 anos depois dele pela moderna lógica matemática, foram desenvolvidos por religiosos para fins de exposição e discussão doutrinal. As contribuições infinitamente ricas das lógicas hindu, taoista, budista, islâmica, judaica e escolástica ao desenvolvimento da teoria da prova e da argumentação seriam uma imensa gratuidade histórica absolutamente inexplicável se a religião não fosse uma "ordem intelectual". Voltar
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Apostilas do Seminário de Filosofia - 16




Conhecimento e presença
(Ser e conhecer - 2)




Se denominarmos "conhecimento" apenas o conjunto de dados e relações que um homem carrega consigo e tem à sua pronta disposição num dado momento da sua existência, o conhecimento será não apenas drasticamente limitado, mas informe e flutuante. Por isto incluímos nessa noção o conjunto mais amplo das informações registradas e disseminadas no seu meio social, sem as quais ele pouco poderia fazer por seus próprios recursos.

Mas esse conjunto de registros, por sua vez, subentende a existência do meio físico, isto é, não somente dos materiais onde se imprimem esses registros, mas também do mundo de "objetos" a que eles se referem e com os quais se relacionam de algum modo.

A noção de "conhecimento" como conteúdo da memória e da consciência humanas torna-se totalmente inviável se não admitirmos que o conhecimento, sob a forma de registro, existe também fora delas. Mais ainda, não podemos admitir que existam somente os registros feitos pelo homem, já que todo material que possa servir de tábua onde se inscrevam esses registros só pode se prestar a esse papel precisamente porque, na sua natureza e na sua forma intrínseca, ele traz os seus registros próprios, adequados a esse fim: não se escreve na água nem se produz uma nota musical soprando sobre uma rocha compacta. Registro é todo traço que especifica e singulariza um ente qualquer. Todo ente traz em si uma multidão de registros, alguns inerentes à forma da sua espécie, como por exemplo a composição química e mineralógica de uma pedra ou a fisiologia de um gato, outros decorrentes de sua interação com o ambiente em torno — como por exemplo as marcas da erosão na pedra ou o estado de saúde do gato considerado num momento qualquer da sua existência individual. Entre estes últimos, destacam-se os registros que nele foram impressos pelos seres humanos com a finalidade de torná-lo um suporte físico dos atos de reconhecimento e memória. A pedra esculpida traz em si os dados de sua composição físico-química e mineralógica, aos quais se superpõem as marcas da erosão e os sinais do trabalho do escultor. Ao contemplar a escultura, o espectador presta atenção consciente apenas às qualidades estéticas da forma esculpida e à aparência visível imediata da pedra que lhes serve de suporte, geralmente sem atentar para a composição íntima, física, química e mineralógica, a qual, no entanto, determina a aptidão da pedra para servir de suporte às qualidades que lhe são subseqüentemente superpostas, seja pela natureza, seja pelo escultor. Até que ponto essas qualidades íntimas da pedra são "indiferentes" ao efeito estético obtido? A resposta depende unicamente da amplitude da concepção do escultor, que tanto pode ter desejado imprimir uma forma significativa a um material qualquer, pronto a fazer o mesmo sobre um outro material se este estivesse à sua disposição, mas pode também ter desejado estabelecer uma ponte entre as qualidades da própria pedra e as da forma impressa. Quem leia o famoso parágrafo de Goethe sobre o granito terá uma idéia de quanto uma pedra, por si, pode sugerir determinadas qualidades esculturais e arquitetônicas. É só por uma comodidade prática que estabelecemos um limite entre as qualidades da forma intencional e as do próprio suporte, fisicamente considerado. Tudo são registros, e a amplitude maior ou menor do nosso horizonte de atenção só modifica a visão que temos de um determinado ente, e não o conjunto objetivo dos registros que estão nele.

Cada um de nós, enquanto existente, traz em si uma multidão de registros, aos quais se acrescentam os resultantes da interação com o meio e os auto-adquiridos (hábitos, por exemplo, ou a história dos nossos atos voluntários). Nessa multidão, onde começa o puro "conhecer" e onde termina o puro "ser"? Basta formularmos esta pergunta para nos darmos conta, de chofre, de que essa fronteira não existe. O puro "ser" só pode ser definido como o registro que está presente mas é desconhecido. Mas um traço meu qualquer que me seja desconhecido não o é mais, nem menos, do que um livro que esteja na minha biblioteca há anos sem que eu o tenha lido. Quando digo portanto que o livro "é conhecimento" e o traço desconhecido do meu ser é "pura existência", é apenas porque os registros que constam do livro foram postos lá por um ser humano, o qual a fortiori os conhecia, ao passo que os registros desconhecidos do meu corpo nunca foram — ao menos assim me parece — conhecidos por ninguém. Mas esta distinção é bem ilusória, ao menos quando tomada ao pé da letra. No livro há decerto muitas qualidades objetivamente presentes que podem ter escapado a todos os seus leitores e mesmo ao próprio autor. Elas serão então "conhecimento" ou "puro ser"? No primeiro caso, terei de admitir um "conhecimento desconhecido", no segundo terei de negar que os registros escritos sejam conhecimento. Por outro lado, até que ponto posso declarar que o traço desconhecido presente no meu corpo não é de modo algum conhecimento? Qualquer que seja a informação contida nesse "x", ela não pode ser absolutamente contraditória com o meu corpo considerado enquanto sistema e organismo, pois é parte dele e se integra, de algum modo, no seu funcionamento, sendo portanto um complemento "inconsciente" das partes dele que operam "conscientemente". Esse "x", portanto, além de estar bem integrado num sistema do qual amplas parcelas são conhecidas, está aí à minha disposição para ser conhecido de um momento para outro, assim como o livro que, na estante, espera que eu o leia. O corpo é registro, o livro é registro, os entes todos à minha volta são registros: transitam incessantemente do ser ao conhecer, do conhecer ao ser, de tal modo que a distinção destes dois momentos é antes ocasional e funcional do que outra coisa.

Por isto mesmo a sensação tem sido o pons asinorum de todas as teorias do conhecimento, que, não sendo teorias do ser e sim do conhecer apenas, têm de encontrar um momento, uma passagem, um salto onde o ser se transmute em conhecer, e realmente jamais conseguem fazê-lo, pela simples razão de que esse salto é apenas uma mudança de ponto de vista e o ser não poderia transmutar-se em conhecer se já não fosse, em si e por si, o conhecer, apenas visto pelo avesso: nada poderia ser objeto de conhecimento se não contivesse registros, e nada pode conter registro sem ser, já, conhecimento "em potência". Mas que esta potência passe ao ato num momento determinado, desde o ponto de vista de um determinado sujeito cognoscente, não quer dizer que este seja o único ou o primeiro a efetivá-la: o registro que me é desconhecido e que agora se torna conhecido já pode ter sido transmitido a milhares de outros entes — humanos ou não — que entraram em contato com o portador desse registro ontem ou um milhão de anos atrás. Não, o "puro ser" não existe: todo ser é conhecido, pois algo de seus registros foi transmitido a outros seres.

Há, portanto, uma forma de conhecer que consiste, simplesmente, em ser. É ser portador de registros e, de algum modo, receptor deles (só não sendo receptor o ente impossível que em nada se relacionasse consigo mesmo e fosse constituído de pura auto-ausência1).

A essa forma de conhecer que consiste em ser, denomino, sumariamente, presença. A presença é o fundamento de todas as demais modalidades de conhecimento. Todas as práticas de concentração, meditação, recolhimento, etc., criadas pelos homens espirituais de todas as épocas têm como finalidade primeira alcançar e conservar o senso da presença. O senso da presença é a plena assunção de um ente por si mesmo, na totalidade dos seus registros e na sua modalidade específica e particular de existência.

Peço a fineza de não confundir o senso da presença com algum tipo de "conhecimento inconsciente", "instinto", "mistério indizível" e coisas tais, já que as distinções entre consciente e inconsciente, instintivo e aprendido, dizível e indizível, etc., só se aplicam a formas derivadas e secundárias de conhecimento, que constituem o orbe daquilo que a rigor se denomina "a mente". As distinções internas do mental não se aplicam ao senso da presença pela simples razão de que este abrange o mental como um conjunto de registros entre outros conjuntos de registros que compõem a nossa presença.

O senso da presença é o ponto de interseção onde todos esses pares de opostos se reúnem e de onde partem para constituir as várias modalidades do conhecimento mental. Ele não poderia, portanto, caber nas categorias que estas determinam.





27/09/99



NOTAS

Neste sentido — e não no de Hegel — o puro ser é idêntico ao puro nada, pois a expressão puro ser designa aí o desconhecido absolutamente incognoscível; incognoscível até para si mesmo.