12. Paulistas e Colonos de São Paulo nas Garras da Inquisição

ARTIGOS
12. Paulistas e Colonos de São Paulo nas Garras da Inquisição

Muito pouco se escreveu até hoje sobre a Inquisição em São Paulo. Tema apaixonante mas pouco pesquisado, malgrado a existência de documentação substantiva que permite-nos afirmar que este Monstrum Horribilem, o famigerado Tribunal do Santo Ofício da Inquisição teve atuação muito mais freqüente e repetida na Capitania de São Paulo, do que até agora os historiadores revelaram.
Quando se fala da presença do Santo Ofício da Inquisição no Brasil, imediatamente se pensa no Nordeste, posto ter sido a Bahia e Pernambuco as Capitanias mais atingidas pela famigeradas Visita-ções de 1591 e 1618 (1). Embora bem menos devassadas, também as Capitanias do Sul, inclusive São Paulo, padeceram terríveis cons-trangimentos e perseguições por parte do incendiário Monstro Sa-grado, tanto que dos 20 morado-res do Brasil a ser queimados nos Autos de Fé de Lisboa, quando menos dois eram residentes nos planaltos de Piratininga: Teotônio da Costa (1686) e Miguel de Men-donça Valhadolid (1731) ambos in-culpados por praticar a Lei de Moi-sés. (2)
Após prolongadas pesquisas na Torre do Tombo, de Lisboa, on-de estão arquivados mais de 40 mil processos inquisitoriais e outro tanto de denúncias e confissões pertencentes à alçada do Santo Ofício, localizamos pessoalmente, até agora, 47 episódios envolven-do moradores da Capitania de São Paulo - material em sua maior parte inédito e que aguarda que al-gum pesquisador da terra lhe dê tratamento mais acurado e a divul-gação que está por merecer.
Praticamente todos os crimes perseguidos pela Inquisição foram praticados e denunciados em São Paulo, destacando-se 16 padres so-licitantes, oito sodomitas, sete bígamos, sete feiticeiros, três auto-res de proposições heréticas, dois cristãos-novos e ainda dois episó-dios envolvendo irregularidades no exercício do cargo de Familiar do Santo Oficio. Tais números certa-mente estão sujeitos a acréscimos - sobretudo quanto à presença dos criptojudeus, a minoria religio-sa mais perseguida pela sanha in-quisitorial - sobre os quais o lei-tor interessado encontrará maiores informações notadamente nas obras de José Gonçalves Salvador, Arnold Wiznitzer e Anita Novinsky.(3)
Dos residentes na Capitania de São Paulo cujos nomes e des-vios chegaram ao Tribunal do San-to Ofício, nos concentraremos inicialmente nos inculpados em crimes da fé: sete acusações de feitiçaria, três denúncias de pro-posições heréticas e dois casos de livres-pensadores. Numa segunda parte deste ensaio analisaremos as histórias de vida de 16 padres residentes na Capitania de S.Paulo envolvidos com melindroso pecado: a solicitação no confessionário de suas penitentes para atos torpes, na época chamada de "solicitatio ad turpia".
Deixaremos para outra ocasião o estudo dos demais desviantes se-xuais: os oito sodomitas (homos-sexuais masculinos) e os sete bíga-mos.
Os doze epi-sódios atinentes aos chamados "crimes contra a fé" ocorreram entre os anos de 1741 é 1781, portanto no período que inclui a restauração da Capi-tania (1765) e a chegada de seu pri-meiro Bispo (1764), época em que essa região, até então muito mar-cada pelo apresamento e tráfico de índios, amplia sua base econômi-ca, passando a incrementar, além da policultura de subsistência, a florescente agroindústria açucarei-ra e a manufatura têxtil, as famo-sas redes paulistas tão disputadas pelos viajantes coloniais. E nessa segunda metade do século XVIII que tem lugar a maior ocupação das regiões de Atibaia, Sorocaba e Itu - exatamente as áreas mais citadas nos medonhos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa.

Hereges e libertinos
Desses doze episódios des-viantes em questão de Fé ocorri-dos em São Paulo, comecemos pe-lo mais recuado cronologicamente - 1741 - quando um cidadão re-sidente na vila de Araritaguaba (hoje Porto Feliz) é denunciado ao Santo Oficio como libertino. Eis como o dicionarista Antônio de Moraes e Silva, ele próprio denun-ciado à Inquisição de Coimbra por esse mesmo crime, definia o que era um libertino: "Indivíduo que é incrédulo na religião e ofende as suas práticas; pessoa que sacudiu o jugo da revelação, entendendo que a razão por si só pode guiar com certeza no que respeita a Deus, à vida futura etc., e por isso não segue os preceitos da religião, antes, pratica atos contrários aos seus princípios".(4)
Essa denúncia ocorreu entre os dias 20-25 de setembro de 1741, inculpando Lucas da Costa Perei-ra, natural do Funchal, então mo-rador na Freguesia de Nossa Se-nhora da Penha de Araritaguaba, sita na margem esquerda do rio Tietê, a cinco léguas de Itu, céle-bre porto de onde partiam as mo-ções rumo à hinterlândia (5).O acusado era "cirurgião aprovado" e constava ter percorrido "toda a América Meridional, assistindo em muitas terras, aldeias e arraiais da Bahia, Rio de Janeiro e São Pau-lo, entre elas Pindamonhangaba e Taubaté". Devia beirar os 50 anos quando chegou à Inquisição de Lisboa a denúncia de que esse ci-rurgião madeirense "come carne nos dias proibidos, não ouve mis-sa e é acostumado a ter atos so-domíticos, sendo agente, com vários negros boçais para cujo fim os sustenta com largueza"(6). Um de seus denunciantes ostentava nome pomposo: Capitão Salvador Mar-tins Bonilha, morador na mesma freguesia, que interpretou as prá-ticas libertinas do cirurgião andarilho como "crime de judaísmo", acrescentando ao rol de suas culpa-s um hediondo sacrilégio muitas -vezes atribuído aos criptojude-us: "teria metido no fogo uma imagem do Menino Jesus!" . Zeloso, o Comissário do Santo Ofício local acondicionou num tufo de algodão a referida imagem carbonizada e a despachou além-mar para que os próprios delegados inquisitoriais avaliassem o sacrilégio. Solícitos em cortar o mal pela raiz, ordenam os Inquisidores a abertura de um Sumário - ordem que leva seis meses de viagem para chegar do Reino às margens do Tietê. Aos 20 de agosto de 1743 tem início o inquérito secreto "em um corredor do Convento do Carmo da Vila de Itu", desempenhando o cargo de Comissário do Santo Ofício o Padre Miguel Dias Ferreira e como escri-vão o carmelitano Frei Diogo Antunes. Uma dezena de testemunh-as confirma as acusações, insistindo, contudo, insistem mais no crime sodomia do que no de "liberti-no" ratificando a preferência do réu por negros boçais, incluindo entre seus cúmplices alguns nativos de Angola, Congo, Benguela, além de crioulos, aos quais "regalava-os com comida e aguardente, brindando-os ele primeiro..." Um sodomita reinol praticante da democracia racial em pleno período escravsita... Entre seus desvios religiosos, além dos já citados, constava "só querer comer touci-nho com couves às sextas-feiras". Sacrilégio cabeludo para aquela época em que qualquer pecadilho levava os católicos a uma eternidade de dias nas chamas do purgatório.
Quando do início desse Sumá-rio, o cirurgião Lucas já tinha se retirado de São Paulo, com destin-o às Minas de Goiás, tanto que somente por volta de 1747 é que a Inquisi-ção conseguirá finalmente agar-rar o sodomita libertino de Arari-guataba, sendo condenado primeiro à pena dos açoites, em segui-da a dez anos de degredo nas galés del-Rei.
Por conta das Visitas Pastorais realizadas no Bispado de São Paulo -pelo Padre Policarpo de Abreu Nogueira, entre 1765-1771, diversos são os desviantes a ter seus nomes enviados ao Tribunal da Fé de Lisboa. Entre eles, o tropeiro Luiz Carvalho Souto, também morador na freguesia de Nossa Senhora Mãe dos Homens de Araritaguaba, que como o cirurgião do Funchal, mantinha acesa nessa vila a chama iluminista da "seita dos libe-rtinos'; sendo acusado de comer carne nos dias proibidos, não se confessar conforme ordenam os mandamentos da Santa Madre Igreja, defendendo ainda a heréti-ca proposição de que "o sexto mandamento (não pecar contra a castidade) não era pecado e nem levava ninguém ao inferno"(7). Centenas de colonos e moradores não só do Reino de Portugal mas também da Espanha foram igualmente denunciados ao Santo Ofício por defender publicamente a mesma convicção: que a "fornicação simples", como os teólogos chamavam às práticas sexuais de gente desimpedida fora do casamento, não eram moralmente condenáveis.
Além destes dois libertinos das margens do Tietê. mais quatro moradores da Capitania de São à Paulo são denunciados por emitirem opiniões contrárias à ortodoxia católica. Em 1762, na vila de Taubaté, Pascoal Pereira, solteiro, defendia que "as almas condenadas haviam de ser remidas, e sua condenação não seria eterna"(8), opinião muitas vezes ressuscitada ao longo dos dois milênios da his-tória cristã, e que teve em Giovan-ni Papini (1881-1956) seu mais re-cente defensor. Proposição herética altamente revolucionária - não obstante estar muito mais próxima da caridade cristã do que a intransigência do preceito canônico católico oficial - pois abria espaço para os réprobos (condenados ao inferno) de no futuro se beneficiarem da misericórdia divina - relativizando destarte o medo da condenação eterna.
Em 1770, na Devassa realiza-da pelo incansável Visitador Padre Policarpo de Abreu Nogueira, na Freguesia de Nossa Senhora do Bonsucesso de Pindamonhangaba, saiu denunciado Pedro Antonio "negociante de negros e animais", acusado de também defender que "Jesus não deixou o 6° Manda-mento como pecado entre os sol-teiros, e só o deixou por São Pe-dro instar .:"(9)certamente ale-gando ter sido o Príncipe dos Apóstolos o único dos Discípulos a ter a sogra citada no Evangelho. Pelo visto, a defesa de que a "fornicação simples não era pecado" foi das proposições heré-ticas mais constantes não só na Pe-nínsula Ibérica, como também na América Latina, inclusive em São Paulo Colnia,(10) vertente hete-rodoxa reforçada pela generaliza-da e até hoje cantada opinião em verso e prosa de que "não existe pe-cado debaixo do Equador".
No ano seguinte, o mesmo sa-cerdote comunica a Lisboa que na visita à Freguesia de São João de Atibaia saiu denunciado o sitiante Francisco Camargo Pimentel, por repetir o mesmo impropério: que "o 6° Mandamento não era peca-do"(11). Até na remota Itapeva, "si-tuada junto à estrada real na vizi-nhança do Rio Verde, pequena vila com matriz dedicada a Sant'Ana,(12) havia leigos que ou-savam interpretar a Doutrina à sua moda, em flagrante conflito com o ensinamento de Roma.
Em 1777 chega aos Estaus do Tribunal do Rossio a informação inculpando mais um paulista: constava que Manoel José, vendedor de fazendas secas, defendia que "no inferno não se padeciam tormen-tos e os padres diziam isto para aterrorizar, pois (o castigo) era so-mente o não ver Deus"(13). Opi-nião absolutamente contrária aos dogmas da Sagrada Teologia que afirmava "sofrerem os réprobos no grande lago da ira de Deus, duas sortes de castigos: a pena do da-no, que consiste na privação da vis-ta de Deus e a pena do sentido, o tormento de arder num fogo que nunca se extinguirá!"(14)
Ainda mais um paulista tem seu nome registrado nos volumo-sos e temidos Cadernos do Promo-tor da Inquisição de Lisboa, incul-pado de proferir heresias relativas à moral sexual. Manoel Xavier Lacerda, "morador em Jacuí, Capita-nia de São Paulo" , vivia aman-cebado com uma cunhada, e defendia que por esta causa não devia ser excomungado conforme determinavam as Constituições Pri-meiras do Arcebispado da Bahia (§969 e seguintes), alegando ha-ver muitos homens amancebados com suas comadres, cunhadas e parentes, "e se Deus não houves-se de dar o céu aos homens por causa do 6° Mandamento, que guardasse o céu para palheiro, acrescentando que o 6° Manda-mento não era pecado pois se o fosse ninguém se salvaria", defen-dendo ainda abertamente a heré-tica proposição de que "a fornica-ção simples não era pecado".(15)Êta paulistaiada petulante!

Feiticeiros, Curadores e Mandi-ngueiros
Entre 1762-1781 chegam à In-quisição lisboeta sete denúncias contra moradores da Capitania de São Paulo envolvidos com a práti-ca de diferentes tipos de sortilé-gios, sendo três curadores, três fei-ticeiros e um portador de uma "bolsa de mandinga" , três dos quais viviam em Guarapiranga, e os restantes em Santos, Cotia, Mogi das Cruzes e Sorocaba. Todos os protagonistas destes episódios, em sua maior parte são descendentes de africanos, e suas história permaneceram até hoje ignoradas na poeira dos arquivos inquisitoriais, e é com alegria que os resgatamos à luz do dia, forne-cendo aos estudiosos das religiões afro-brasileiras informações inédi-tas sobre práticas divinatórias e ce-rimônias cabalísticas praticadas em São Paulo na segunda metade dos Setecentos.
As chamadas bolsas de man-dinga ou patuás eram amuletos apreciadíssimos pelos colonos afro-luso-ameríndio-brasileiros, tendo levado às barras do Tribunal da Fé mais de uma dezena de escravos e liber-tos não só do Brasil, como também de Portugal(16), sendo este o motivo da realização de um Sumário de cul-pas na Visita Pastoral de Soroca-ba no ano do Senhor de 1767. "Vi-la considerável e florescente, é ornada com uma igreja paroquial da invocação de Nossa Senhora da Ponte, um recolhimento de mu-lheres, um Hospício de Bentos, uma Ermida de Santo Antônio e outra dedicada a Nossa Senhora do Rosário, cuja construção os pre-tos continuam".(17) Famosa por sua feira de muares, em Sorocaba se concentrava buliçosa população de tropeiros, vaqueiros, tangedores e viandantes, os principais aficio-nados desta devoção a um tempo sincrética e sacrílega, à qual se atribuía o poder de "fechar o cor-po" contra todo tipo de perigos fí-sicos ou malefícios diabólicos.
O acusado era conhecido tão- somente pelo nome de João, Mu-lato Escravo. Ao ser agarrado pela autoridade eclesiástica, aberto o patuá que trazia no pescoço, den-tro se encontrou um pedaço de sangüíneo (espécie de guardanapo utilizado na missa para limpar as derradeiras gotas do sangue de Cristo conservadas no cálice), um pedacito de corporal (toalhinha destinada a abrigar partículas do corpo de Cristo caídas no altar), além da folha de um missal com oração e gravura de Jesus, uma hóstia consagrada - que segundo declarou o réu, fora-lhe ofertada por um sacristão - "e muitas ou-tras coisas, como raízes, dentes de cobra, etc. que por não serem da Igreja, foram queimadas".(18) Diz o documento que "o sangüíneo ain-da cheirava vinho" sugerindo ter sido recentemente surrupiado da sacristia. Ao ser inquirido por que razão trazia a dita hóstia consagra-da, respondeu o mulato João que "era para comungar na hora de sua morte", inspiração piedosa porém sacrílega, posto que até poucos anos, apenas os sacer-dotes tinham o privilégio de tocar no preciosíssimo corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Só um estu-do comparativo dos outros réus do Brasil, que por trazerem semelhan-tes bolsas de mandinga foram pre-sos e processados nos cárceres se-cretos da Inquisição, poderá esclarecer porque este escravo de Sorocaba teve melhor sorte, sen-do arquivado este Sumário sem que os Inquisidores determinassem seu aprisionamento. Aliás, salvo er-ro, nenhum dos residentes em São Paulo acusados pela prática de fei-tiçaria chegou de fato a ser encar-cerado pela Inquisição, nem mes-mo a perigosa bruxa Inácia, negra crioula, escrava de Manoel Perei-ra Camargo, residente em Cotia. infamada de ter morto a muitas pessoas graças a seus medonhos feitiços.(19)
Sobre alguns destes feiticeiros e cu-radores dispomos de interessantes informações sobre o modus operandi no exercício de suas artes divina-tórias. Vários deles viviam sob o jugo da escravidão, como o negro José, escravo de Francisco Andra-de, morador na Freguesia de San-tana de Mogi das Cruzes, contra o qual é feito um Sumário onde 19 testemunhas fornecem interessan-tes detalhes etnográficos sobre suas mistificações(20).É acusado de "curar feitiços no Distrito a fora, adivinhando quem os botou, usando de uma panela (de barro) nova, onde colocava caveiras de caranguejos (e de outros animais) com água, e na boca mete um dedal de prata dizendo certas palavras, ten-do um frango preto ao lado da panela." Uma testemunha dá outras informações: disse que as caveiras usadas por José eram de pássaros (corvos) e que durante o "traba-lho"; falava palavras em sua língua nativa, desenterrando com uma fa-ca, dentro ou fora das casas, assim como pelas encruzilhadas das es-tradas, misteriosas botijas ou sa-quinhos repletos de ossos de sa-po, penas, vidros, cabelos, pimenta, agulhas e outros espan-tosos ingredientes. Tinha também o costume de tirar água da dita pa-nela e aspergir com a boca pela so-leira da porta, ou esguichando-a no chão quando abria os ditos bu-racos para desenterrar feitiços - mantendo sempre o galo preto a seu lado, do qual, certa feita, tirou três penas do rabo, com elas fazendo uma cruz quando no ato de descobrir malefícios. A um doente recomendou o uso de defumadores. Tudo leva a crer que o es-cravo José gozava de boa consideração por onde passava, tanto que na época em que morou na Freguesia da Sé, na cidade de São Paulo, freqüentou ilustres re-sidências, tendo tratado de Dona Antonia Pinta do Rego, e em Mo-gi a Maria de Cândia Siqueira, além de outros brancos e a incon-táveis negros.
Enquanto este negro de Mogi das Cruzes era expert em desen-terrar feitiços, na vila de Santos ou-tro escravo é denunciado exatamente pelo contrário: por ser autor de terríveis malefícios. Chamava-se Felipe - e encontrava-se preso por ordem do Capitão do Forte da Praça de Santos, sob a acusação de ter feito um feitiço tão forte e peçonhento contra seu senhor, o qual "só tem calma mediante os exorcismos da Igreja": Provavelmente pressionado por violenta tortura, o preto Feli-pe confessou ter praticado os seguintes malefícios: primeiro mistu-rou na comida de seu amo um bocadinho de pó de defunto e dente de jacaré, provocando-lhe fortes dores nas cadeiras e barriga. Em seguida, enterrou debaixo da porta de sua casa um pássaro mirrado, dois ovos de galinha e uma raiz grossa de butá (planta da família das Menispermáceas, também chamada "falso paratudo", raiz medicinal preta por fora e amarela por dentro). Disse ter feito este feitiço "para seu senhor ir mirrando, e que quando os ovos apodrecessem, também lhe apodreceriam as entranhas e que a raiz do butá era para ele conservar a vida e não morrer logo". O negro era o Cão! Disse mais, que fora o preto crioulo Manoel, então trabalhando nas minas de Mato Grosso, quem lhe ensinara tais artes cabalísticas, o qual, certa vez, chamando pelo Diabo à meia noite, em vez de apenas um, apareceram dois Demônios, entrando um no corpo do escravo Felipe e o outro se apossando de seu senhor. Fantasioso, este feiticeiro de Santos ga-rantia que, enquanto esteve preso, uma cobra se encarregava de guar-dar os feitiços que enterrara na ca-sa de seu amo. Ao ser-lhe arran-cada do pescoço sua bolsa de mandinga, assim foram identifica-dos seus ingredientes: um dedo de criança(21), lasquinhas de unha, osso de defunto, pó de sapo, raiz de mil-homens (planta da família das Aristolóquias, usada como contraveneno nas picadas de co-bra), unicórnio (chifre de rinoce-ronte). Irônico, o Capitão do For-te da Praça de Santos conclui assim sua denúncia: "Se o escra-vo Felipe é feiticeiro, que o Santo Ofício conclua..."(22)
Encerramos esta primeira coleção das histórias dos moradores de São Paulo denunciados ao Tribu-nal da Inquisição pelo crime de fei-tiçaria com três acusações registra-das na vila de Guarapiranga (município de Ribeirão Bonito, zo-na do Paranapiacaba), no ano de Senhor de 1772. Diferentemente de todos os demais casos, aqui o delatado é um branco, Bento de Lima Prestello, sobrenome de ori-gem italiana, e seu denunciante, Isidoro da Silva Costa, residente na Capela de São Miguel, no mesmo distrito. Disse que este curador vie-ra das minas do Sabará, da fregue-sia de Santo Antônio da Roça Grande, e assim praticava seus ri-tuais heterodoxos: "punha na mão do enfermo umas raízes contra be-ninos ("doença que não apresenta caráter grave"), para saber se tinha ou não feitiços, e se a mão tremia, tinha; benzia então o enfermo di-zendo: Jesus, Nome de Jesus, Deus te fez, Deus te curou, Deus acanhe a quem te acanhou. Deus te tire o mal que no teu corpo entrou: o ar de lua, ar de figueira, ar de pe-reira, ar de perlezia, ar de corrup-to, ar de inveja, ar de feitiçaria, ar de enchaque, ar de maleitas e mais coisas que não estou ciente pelos poderes da Virgem Maria, São Pe-dro e São Paulo, que o corpo de Fulano fique são e salvo como na hora em que foi nascido, assim como Nosso Senhor sarou das cinco chagas. Padre-Nosso, Ave Maria". Além desta reza forte, o curador Prestello é acusado de exorcizar os endemoniados - privilégio exclu-sivo dos sacerdotes detentores da autorização episcopal - "fazendo adivinhações com uma grande bol-sa, batendo os pés no chão como fazem os exorcistas, e com uma cruz de contas fazia cruz na cabe-ça da pessoa enferma que tinha es-pírito maligno, dizendo umas pa-lavras incompreensíveis e também batia com a bolsa na parte dolori-da do enfermo".(23)
Nesta mesma ocasião são de-nunciados como feiticeiros mais dois moradores da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga: o escravo identifica-do como João, Preto Mina, useiro em receitar remédios cabalísticos, o qual, ao ser procurado por um tal Pedro Teixeira, respondeu que "não podia curar sem falar com sua gente" - provavelmente referindo-se a seus ancestrais de-sencarnados, aos quais os nativos da Costa da Mina atribuem pode-res preternaturais. Embora africa-no nato, este João de Guarapiran-ga já incluía em seus rituais inovações apropriadas da tradição luso-brasileira: "fez uma cruz no chão e no seu meio pôs uma pe-dra de sal e pingava-lhe uma pin-ga de cachaça, dando logo asso-bios na tal cruz, e saudava a todos com Louvado Seja Cristo! e como não entendiam os tais assobios, ex-plicava o preto de boca".
Além de João Mina, outro fei-ticeiro de Guarapiranga é citado na mesma denúncia: José Gonçalves, preto forro, o qual "fazia adivinha-ções por diferente modo - com uma boceta (caixinha de guardar rapé) dava assobios e depois apli-cava os remédios ensinados por sua gente"(24).
Por mais de dois séculos esta dezena de feiticeiros, libertinos, hereges e curadores ficaram esque-cidos na poeira dos arquivos. Ao resgatar-lhes a memória, duas fo-ram nossas intenções: estimular outros pesquisadores a rever cui-dadosamente os manuscritos ori-ginais que aqui nos contentamos em resumir, além de indicar sua lo-calização arquivística, facilitando o trabalho de futuros estudiosos. Nossa inten-ção mais profunda é chamar a atenção de todos, pesquisadores e leitores, para o perigo representa-do pela hegemonia dos monstros sagrados - sejam os Minotauros, Chibungos, Inquisições e espectros quejandos, que à moda dos mistificadores, quiromantes e prestidi-gitadores do além, pretendem ser os donos de uma verdade revela-da que no mais das vezes não pas-sa de simplória alienação quando não condenável charlatanismo. Concluo a primeira parte deste ensaio fazendo minhas a pala-vras luminares do Dr. Antônio Gonçalves Gomide, que em 1814 publicou um corajoso opúsculo desmascarando a falsa santidade de uma beata mineira, sua contempo-rânea: "Talvez me argúam dizen-do: que te importa a piedosa frau-de em que vivem satisfeitos os crédulos? Privá-los desta ilusão não é tirar-lhes um entretenimento que os consola? Respondo: A verdade é o principal elemento da vida so-cial. A impostura aos ignorantes equivale à opressão da força sobre os mais fracos. O filósofo deve achar e promulgar a verdade.(25)

NOTAS

Agradeço ao CNPq a dotação que me permitiu realizar pesquisas na Torre do Tombo. Este artigo faz parte de um estudo mais amplo intitulado "Moralidade e Sexualidade no Brasil Colonial" e uma versão modificada foi originalmente publicada no D.0. Leitura, SP, 10 (120), maio de 1992.
1. Siqueira, Sônia. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial, São Paulo, Editora Ática, 1978.
2. Wiznitzer, Arnold. Os judeus no Brasil Colonial, São Paulo, Editora Pioneira, 1966:147
3. Salvador José G. Os Cristãos-Novos: Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro. São Paulo, 1976; Cristãos-Novos, Jesuítas e Inquisição. São Paulo, Livra-ria Editora Pioneira, 1969. Novinsky Ani-ta W. Inquisição. Inventários de bens confiscados a Cristãos-Novos. Lisboa, Im-prensa Nacional. 1977.
4. Moraes e Silva, Antonio. Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa, Empreza Literária Fluminense, s/d.
5. Aires de Casal, Manuel. Corogratia Brasílica. (1817) São Paulo, Livraria Edi-tora Itatiaia/USP 1976: 114
6. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT), Inquisição de Lisboa, Caderno do Nefando n° 19, fl. 411, 20-9-1741
7. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Araritaguaba, 25-9-1765.
8. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 126, Taubaté, 8.6.1762.
9. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Pindamonhanga-ba, 10-12-1770.
10. Vainfas, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1989.
11. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Atibaia, 18-2-1771.
12. Aires de Casal, Op. Cit. 1976: 114
13. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Itapeva, 4-10-1777
14. Guillois, Abade Ambrósio. Explica-ção Histórica, Dogmática, Moral, Litúrgica e Canônica do Catecismo. Porto, Li-vraria Internacional, 1878: 426.
15. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 131, Jacuí, 27-7-1781.
16. Mott, Luiz. ' A Vida Mística e Eróti-ca do Escravo José Francisco Pereira. "Tempo Brasileiro, (92-93), Jan/Jun. 1988: 85-104. Souza, Laura de Mello. O Diabo na Terra de Santa Cruz. São Paulo, Com-panhia das Letras, 1988.
17. Aires de Casal, Op. Cit. 1976: 114
18. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Sorocaba, 1767
19. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 130, Denúncia do Co-missário Salvador Camargo Lima, 1781.
20. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 126, Mogi das Cruzes, fl. 32, 1762
21. Mott, Luiz. "Dedo de Anjo, Osso de Defunto: Os restos mortais na feitiçaria afro--luso-brasileira. "D.O. Leitura São Paulo, 8 (90) novembro 1989: 1-3.
22. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Santos, 7-10-1776.
23. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Guarapiranga, 10-5-1772.
24. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Guarapiranga, 10-5-1772.
25. Gomide, Antonio Gonçalves. Impug-nação analítica ao exame feito em uma rapariga que julgaram santa na capela da Piedade, Comarca de Sabará. Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1814