O CÓDIGO CIVIL E AS ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS

O CÓDIGO CIVIL E AS ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS


Prof. José Eduardo de Alvarenga
Mestre em Direito Político e Econômico
Procurador aposentado do Estado de São Paulo


O Código Civil – Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, definiu, como pessoas jurídicas de direito privado as associações, as sociedades e as fundações, conforme disposto no artigo 44.
Naturalmente, não podendo ser as organizações religiosas consideradas sociedades por não terem finalidade econômica (venda de bens ou serviços) foram incluídas, implicitamente, nas categorias comuns de associações ou de fundações.
Em 22 de dezembro de 2003, veio à luz a Lei Federal 10.825, alterando o artigo 44 para incluir, entre as pessoas jurídicas, as organizações religiosas e os partidos políticos. Assim, aos incisos do artigo 44 que eram três (I – as associações, II - as sociedades e III – as fundações) foram acrescentados mais dois: o inciso IV – as organizações religiosas e V – os partidos políticos.
Do mesmo modo, o parágrafo único do mesmo artigo foi renumerado para § 2º, com a mesma redação original: “as disposições concernentes às associações aplicam-se subsidiariamente aa sociedades que são objeto do lIvro II da Parte Especial deste Código”, e foram acrescentados mais dois parágrafos: Literalmente: § 1º. São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento, e § 3º. Os partidos políticos serão organizados e funcionarão conforme o disposto em lei específica.”
Em conseqüência, também foi alterado o artigo 2.031 (“as associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, terão o prazo de um ano para se adaptarem às disposições deste Código, a partir de sua vigência”), com a introdução de um parágrafo único: “O disposto neste artigo não se aplica às organizações religiosas nem aos partidos políticos”.
Embora tardiamente, a legislação veio corrigir grave irregularidade – para não dizer inconstitucionalidade – que constava da Lei original, e que estava causando perplexidade e dúvidas nas instituições dessa natureza. Por exemplo. a igreja será obrigada a reformar o estatuto social?; os membros de sua igreja só poderão ser excluídos por justa causa?; todas as contas deverão ser obrigatoriamente, aprovadas pela assembléia geral?; ou e os bens particulares dos administradores poderão ser atingidos em caso de abuso ou de desvio de recursos da Igreja? Para alteração dos Estatutos, é obrigatória a presença de um terço dos associados na Assembléia geral?
Sem dúvida, a aplicação do Código na sua forma original causaria embaraço ao funcionamento das entidades religiosas, afrontando a Constituição Federal. .
Tal situação representava verdadeira afronta aos ditames da Constituição federal, que consagra a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos. Além disso, é importante ressaltar que a Carta veda aos entes federados embaraçar o funcionamento de qualquer culto religioso ou igreja. O direito de liverdade religiosa flui diretamente da liberdade de manifestação do pensamento e expressão da atividade intelectual, artigo 5º, IV e IX CF. Liberdade que deve ser exercida respeitando as liberdades dos outros grupos, garantindo-se o direito de resposta em casos de abuso. Compõe ainda a liberdade religiosa a liberdade de cátedra do artigo 206, II da Constituição da Republica que dispõe sobre a liberdade de ensinar e divulgar o pensamento. Não bastasse isso, também o artigo 5º, inciso VI, é claro: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.
Como se não bastassem essas disposições, ao tratar da organização do Estado, a Constituição reitera, no artigo 19, inciso I: "É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada na forma da lei a colaboração de interesse público."
É evidente que, dentre os princípios em que se funda o Estado brasileiro, está o da separação entre Igreja e Estado, não admitindo interferências.
Não ficou definido o que seja uma organização religiosa: seriam somente igrejas, sinagogas, mesquitas, centros espíritas, ou também são organizações religiosas os seminários, faculdades teológicas, educandários, associações de igrejas, convenções, instituições que tem origens confessionais? Conforme tivemos oportunidade de afirmar em nosso “Imunidade Tributária dos templos religiosos” (in “Reflexões em Direito Político e Econômico”, organizadora Mônica Herman Salen Caggiano, São Paulo: Ed. Mackenzie, 2002, pp. 31-54), somos tentados a entender que a proteção constitucional se refere a locais (templos) e atividades (prática de culto). Aparentemente, no afã de corrigir o erro, a emenda ao Código ultrapassou a garantia da Constituição: por falta de definição, é razoável entender que “organização religiosa” tem sentido mais amplo do que o de templo destinado a culto. Muito embora seminários, faculdades, educandários ou outras instituições possam assumir as mais variadas formas (associação, fundação ou sociedade), poderão também assumir essa nova forma, inaugurada pela lei, de organização religiosa. Aliás, em nenhuma parte a Constituição usa essa expressão. De todo modo, inclusão, por lei ordinária, de determinadas categorias de entidades em tratamento mais benéfico não implica inconstitucionalidade: os direitos expressos na Constituição são direitos mínimos. Não há dúvida - e ocorre com freqüência – que novos direitos venham a ser contemplados através de instrumento normativo infra-constitucional.
Enfim, embora fosse ideal que a nova lei, ao inaugurar uma expressão, cuidasse de traçar claramente os seus contornos, não há dúvida que, embora tardiamente, foi corrigido o texto. E as várias organizações religiosas não estão mais obrigadas a alterar seus estatutos nem se submeterem às regras próprias das associações ou das fundações.