Políticas afirmativas e cotas de reparação para os homossexuais

ARTIGOS
10 . Políticas afirmativas e cotas de reparação para os homossexuais

1. A concessão de cotas como estratégia governamental de ação afirmativa em favor dos afro-descendentes (20%), das mulheres (20%) e deficientes físicos (5%) já é lei na contratação de novos funcionários nos Ministérios da Justiça e Reforma Agrária, e em proporções específicas na seleção de alunos para o Itamaraty, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, etc. Trata-se portanto de uma tendência que deve se ampliar para outros setores, estados e com certeza, incluir outros segmentos discriminados. Já não é mais questão de discutir os prós e contras das políticas afirmativas. As cotas já são lei, e os argumentos a seu favor foram mais convincentes. Democracia é assim. Se não derem certo, depois de alguns anos de aplicação e avaliação, compete à sociedade civil pressionar para que tal lei seja revogada. Antes de se experimentar empiricamente, não há como saber de sua eficiência como estratégia de superação das desigualdades acumuladas historicamente e que hoje dificultam estruturalmente aos grupos discriminados concorrer com igualdade de oportunidade ao lado dos demais cidadãos. Trata-se de uma medida de alcance imediato, a curto prazo, para em poucos anos capacitar novos profissionais também naqueles grupos que até agora não tiveram acesso a tais funções. Claro que medidas estruturais de longo alcance são igualmente imprescindíveis, permitindo que negros, mulheres, homossexuais, deficientes físicos, índios e demais minorias sociais tenham igualdade de acesso a todos os benefícios que hoje são privilégio da elite comanda pelo homens-brancos. E que políticas públicas afirmativas e legislação específica sejam implementadas no sentido de erradicar e punir o racismo, homofobia, machismo e demais preconceitos que impedem o acesso igual de todos à cidadania plena.

2. Diz a Constituição Federal que todos são iguais perante a lei. Ora, se as cotas e demais ações afirmativas visam corrigir as discriminações históricas contra os grupos socialmente mais vulneráveis, todos os grupos sociais vítimas de discriminação e que têm sua cidadania limitada devido a tais peculiaridades, devem ter igualitariamente os mesmos direitos a se beneficiar das reparações legais. Portanto, já que os homossexuais de ambos sexos constituem comprovadamente o segmento social mais discriminado na sociedade brasileira posto que diferentemente das demais minorias, os gays, travestis, transexuais e lésbicas sofrem gravíssimas violações de seus direitos dentro de casa, praticados pela própria família, ultrapassando em mais de 95% os homossexuais que devido à opressão heterossexista não ousam assumir e afirmar sua identidade sexual e estilo de vida diferenciado; já que o critério diferencial da implementação de ações afirmativas é exatamente o maior grau de apartação social que pesa sobre diferentes grupos sociais, nada mais justo e certo que os mais discriminados sejam os mais beneficiados, cabendo portanto aos homossexuais tratamento diferenciado pois são comprovadamente os mais vitimizados em nosso país. Aliás, a própria Constituição Federal garante o princípio de isonomia: a igualdade de todos perante a lei. Se as cotas foram legalizadas para os discriminados, que todos, inclusive os GLT tenham acessos igual a tais direitos.

3. A argumentação de que a implementação de cotas aos homossexuais abriria espaço para "falsos" homossexuais concorrerem a tais benefícios não é suficiente para descartar esta proposta afirmativa. Primeiramente, caberá aos verdadeiros gays, lésbicas e transgêneros se anteciparem na solicitação das cotas, o que redundará na maior visibilidade, reforço da auto-estima e afirmação de uma numerosa categoria social que faz da auto-negação, da clandestinidade, da mentira, seu estilo de vida. Do mesmo modo como deve funcionar com os afro-descendentes, o critério de seleção dos beneficiários das cotas deve ser a auto-identificação, e apenas em casos de dúvida, em comprovação documental no caso dos negros, a cor dos progenitores ou antepassados próximos, ou até mesmo, exame do dna nos casos mais polêmicos. No caso dos homoeróticos, a auto-identificacao como gay, lésbica ou transgênero deve ser suficiente para comprovar a orientação sexual. Porém, no caso de dúvida, provas documentais podem ser exigidas como já faz o INSS para comprovar que o/a homossexual vivia relação estável com alguém do mesmo sexo, recebendo o benefício correspondente. Não vamos deixar de pleitear direitos fundamentais sob o argumento menor que haverá fraudadores. Nestes casos, os grupos homossexuais organizados têm estrutura e criatividade para propor soluções afim de equacionar tais problemas. Neste sentido, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação aprovou em sua primeira reunião, (18-12-2001), minha proposta de criação de um Conselho Nacional das Minorias Sexuais (nome e funções a serem discutidas), órgão que poderá, perfeitamente, estabelecer os critérios de comprovação da fidedignidade dos candidatos homossexuais e exclusão dos falsários.

4. Reivindicar cotas não é assumir postura vitimista, nem curvar-se ao paternalismo dos donos do poder. Trata-se de estratégia racional e justa, politicamente correta, pois visa corrigir distorções históricas, que sem discriminações positivas, ou melhor dizendo, políticas afirmativas, tais desigualdades permanecerão por gerações infindáveis, perpetuando a mesma situação de desigualdade e injustiça, seguindo aquela injusta lógica evangélica: "a quem tem se dará, a quem não tem, se tirará". Quando os afro-descendentes divulgam, através de pesquisas fidedignas, que os pardos e pretos ocupam os níveis mais baixos de renda, emprego, qualificação, saúde, etc não estão sendo vitimistas, mas realistas, pois as estatísticas comprovam de forma cabal, que a cor interferiu diretamente na exclusão socioeconômica. O IBGE rejeitou incluir a variável orientação sexual no último recenseamento: hoje, o próprio Conselho Nacional de Combate à Discriminação apoiou antiga proposta minha e da Dra. Maria Berenice Dias, de serem os homossexuais incluídos nas próximas estatísticas demográficas. Baseamo-nos hoje em estimativas, relatórios anuais do Grupo Gay da Bahia sobre assassinatos e discriminações homofóbicas, e mais recentemente, nos dados dos serviços de Disque Denúncia Homossexual do Rio de Janeiro e Brasília. Tais fontes confirmam sem sombra de dúvida que a discriminação anti-homossexual é uma gravíssima epidemia em nosso país, e ao denunciá-la, lançamos mão da mesma estratégia politicamente correta dos negros, judeus, deficientes físicos, quando divulgam a crueldade da discriminação sofrida por tais grupos. Muita gente não sabe que centenas de homossexuais são assassinados em nosso país, simplesmente por ódio contra a homossexualidade. Deixar de demonstrar publicamente que somos os mais discriminados é dar as costas à verdade, abdicar de uma arma convincente contra a opressão: o próprio Programa Nacional de Direitos Humanos reconhece que os homossexuais estão entre os grupos mais vulneráveis da sociedade brasileira. Qual outro grupo é referido de norte a sul do país com a expressão: "viado tem mais é que morrer!"? Vitimismo seria apenas choramingar, maldizer o sofrimento. Tornar pública a violência homofóbica, reivindicar igualdade, exigir legislação específica e punição dos faltosos, propor ações afirmativas de resgate da cidadania não tem nada de vitimismo, pelo contrário, é ação politicamente engajada, socialmente acertada Acusar tais propostas de vitimismo, sim, é má fé, visão tacanha e imobilismo anti-dialético. Que seja a última vez que tenhamos de refutar estas acusações levianas e equivocadas, inaceitáveis sobretudo partindo de membros da própria comunidade homossexual.

5. Lutar por cotas para todos os discriminados, inclusive os homossexuais, além de ter o respaldo constitucional e se basear no princípio da justiça universal e da isonomia, traz em seu bojo um aspecto de grande importância para o futuro do país: obriga às próprias minorias discriminadas a se conscientizarem da situação de opressão em que vivem e à sociedade em geral, a refletir sobre as diferentes categorias sociais que formam o povo brasileiro, e sobretudo, as injustiças e relações pouco democráticas e situação de apartação que vive a maior parte de nossa população, as assim chamadas minorias. A propalada democracia racial é um mito, o paraíso tropical uma mentira, a cordialidade tradicional dos brasileiros um engodo: queremos sim fazer deste país, um paraíso tropical onde haja democracia, cordialidade, respeito à diversidade. E para tornar real nossa utopia do arco-íris, temos de apoiar políticas afirmativas, cotas e reparação, pois são a esperança de que vão contribuir significativamente na construção de uma sociedade mais livre, igualitária, fraternal, justa e solidária que todos desejamos. Neste sentido, em breve o Grupo Gay da Bahia, o Grupo Quimbanda-Dudu de Gays Negros e a Associação de Travestis de Salvador iniciarão campanha nacional para que tão logo se inicie a política das cotas para negros, mulheres e deficientes físicos, sejam os gays e lésbicas negros e deficientes físicos os primeiros a serem beneficiados, pois objetivamente, uma mulher negra ou um gay negro sofrem maiores discriminações do que os homens negros. Do mesmo modo: um/a deficiente físico homossexual por ser duplamente discriminado, deve ser mais compensado. Afinal, a proposta do jovem Marx revela-se mais humanista e justa do que a citada lógica evangélica, quando pleiteou "a cada um segundo sua possibilidade, a cada um segundo suas necessidades". Cotas para os homossexuais são uma necessidade inadiável, pois sobretudo as travestis, transexuais e homossexuais mais estereotipados/as não gozam das mesmas possibilidades de inserção socioeconômica dos demais cidadãos. As palavras do atual Arcebispo do Rio de Janeiro refletem a cruel realidade de tal apartação: "Gays são agente pela metade, se é que são gente!" Salvador, 22/12/2001

6. A presença de homossexuais escondidos em todas as camadas sociais não é suficiente para descartar a proposta de concessão de cotas para gays, travestis e transgêneros pois a própria manutenção destes homossexuais na clandestinidade é uma imposição cruel da ideologia heterossexista, assimilada pelos próprios homossexuais, que seguramente viriam a sofrer algum tipo de discriminação ou preconceito caso viessem a sair do armário. Strictu sensu, só deveria ser chamado e considerado "gay" ou " lésbica o homossexual assumido ou identitário, aquele que tem identidade e afirmação homossexual e é reconhecido enquanto tal, e por isto discriminado, pela sociedade global. Não basta praticar atos homoeróticos secretamente para ser socialmente reconhecido como gay ou lésbica. Estes sim, poderiam ser chamados de HSH, homens que fazem sexo com homens, ou mulheres que fazem sexo com mulheres, ou quando muito, homens e mulheres com práticas homossexuais, alguns bissexuais. Assim sendo, as cotas deveriam beneficiar tão somente aqueles gays e lésbicas assumidos, obviamente também os/as transgêneros (travestis e transexuais), que exatamente por serem publicamente reconhecidos como "desviados, seja por se declararem enquanto tal, seja por seu estilo de vida ou papel de gênero peculiar, sofrem, sofreram ou sofreriam, algum tipo de exclusão causada pela preconceito homofóbico. Quanto à gravíssima discriminação contra os gays e lésbicas "bandeirosos", os relatórios anuais do GGB confirmam cabalmente a crueldade da homofobia em nosso país. Apenas um exemplo: 65% dos brasileiros não votariam num gay para cargo político, enquanto apenas 5% não votariam em um negro. Não se trata portanto de distorção do significado compensatório que justifica ações afirmativas em favor dos GLT, pois inevitavelmente, os GLT assumidos sofrem diferentes e graves tipos de discriminação. Assim sendo, homossexuais "disfarçados" que não queiram ser identificados enquanto tal, poderiam ser comparados a indivíduos de cor branca, que embora descendentes de pais ou avós negros, e que seriam tecnicamente afro-descendentes, por não ostentarem fenótipos negróides, não sofrem socialmente preconceito racial, posto que "passariam" normalmente como brancos. Neste sentido, não haveria razão destes afro-descendentes que se auto-classificam como "brancos" se beneficiarem de cotas, assim também estariam excluídos de políticas compensatórias os homossexuais presumidos como heterossexuais, pois não sofrem os efeitos perversos da apartação e exclusão social. Não resta dúvida que a adoção de cotas e políticas afirmativas e compensatórias viria a beneficiar significa e positivamente o movimento de libertação homossexual, não só estimulando aos 95% de homoeróticos envergonhados e clandestinos a superarem a homofobia internalizada e desenvolverem sua auto-estima enquanto gays e lésbicas conscientes, como também, igual aos negros, índios, judeus, e demais minorias sociais, a terem a dignidade de sair da gaveta, trocando alienação por consciência, declarando com orgulho: é legal ser homossexual! (6-1-2002)